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Sustenta Sérgio Ribeiro que «não vivemos em liberdade, vivemos com liberdades».* É um enunciado que não altera substantivamente o tópico e, se entendo, serve para dar expressão a um entendimento ou a uma constatação que nega a existência - aqui?, agora? - da liberdade e afirma a existência de liberdades, como se estas fossem concebíveis e possíveis sem aquela. Em termos conceptuais é mais ou menos o mesmo que afirmar «não vivemos em portugal, vivemos com pessoas, fauna, flora e paisagem portuguesas». Percebe-se a diferença, mas a diferença não é de substância ou de escala, é de perspectiva. E não parece que seja uma translação analítica que acrescente entendimento sobre o assunto.
Apesar das várias concepções de liberdade que existem disponíveis no catálogo filosófico - e mesmo no âmbito da concepção específica de liberdade como «consciência da necessidade», seja na variante beata, seja na variante pagã -, a liberdade tem um valor ontológico, não cindível. A liberdade é a liberdade, não é as liberdades. O que não significa que tenha sido constituída imediata e totalmente nos termos actuais.
Em termos históricos a liberdade foi sendo concretizada por via do estabelecimento de garantias - direitos -, garantias de ordem vária, civis, políticas, sociais, culturais. Aquelas são de geração anterior à geração destas, umas e outras com consagração institucional demorada e, apesar de tudo, não definitiva, porque nada é definitivo. O complexo de direitos e de responsabilidades que existe neste momento nos estados com constituição de matriz liberal e com regime político democrático serve justamente para, sob determinada arquitectura institucional e através das relações e dos processos sociais existentes, concretizar a liberdade. Portanto, durante a fiação longa e tensa do tempo - com muito labor ideal e debates, com muita carne maçada, muito sangue derramado -, a hipótese da liberdade foi instituída através das afirmação e consignação de vários direitos fundamentais, tão fundamentais como outros - o direito à vida, por exemplo -, e da materialização de um conjunto de dispositivos com o objectivo de garantir e proteger tais direitos. Neste sentido, embora seja um factor matricial da composição social moderna, a liberdade não é algo dado ou adquirido, correspondente ao estado natural ou ao programa racional pleno, é uma construção histórica - e como qualquer construção histórica é uma conquista que se reconquista e configura através do processo histórico, por jamais estar garantida ou ser perfeita. Na prática, como as demais realidades sociais, a liberdade é simultaneamente condicionada e condicionadora e o plano em que é isso é contingente.
Mesmo no quadrante liberal - talvez o espaço de pensamento e reflexão onde a liberdade mais foi considerada no âmbito da modernidade -, a liberdade não é entendida ou afirmada como valor absoluto, é-o, sim, como valor limite. Há a liberdade «ideia» e há a liberdade «coisa». Como em relação a tudo o que é projecto, a coisa está atrasada em relação à ideia e a tensão provocada por tal atraso faz parte da coisa e anima-a. Pelo que, apesar das adversidades e vicissitudes, a emancipação tem prosseguido, a tal ponto que, quanto mais não seja por contraponto histórico, pode afirmar-se que, hoje, em portugal, em ourém, vive-se em liberdade.
Faz tanto sentido aludir a «excesso de liberdade» ou a excesso de determinados direitos fundamentais quanto faz sentido aludir a «excesso de saúde» ou a «excesso de justiça», nenhum. Se é liberdade - e não outra coisa qualquer -, a liberdade nunca é demais. Ainda hoje o problema continua a ser justamente o oposto, o dos obstáculos e o das ofensas à liberdade, portanto a liberdade estorvada ou a menos.
Faz tanto sentido referir a «liberdade de subjugar o mais fraco» quanto faz sentido mencionar a «liberdade de apalpar ou sovar gajas», a «liberdade de atropelar peões», a «liberdade de assaltar velhinhas» ou a «liberdade de matar outra pessoa», nenhum também. É que tais «liberdades» não são liberdade. Podem ser muita coisa - até coisa distorcida -, mas liberdade não são. Aliás, embora não só a liberdade, a liberdade existe justamente para obviar à subjugação. Isto é básico e elementar. A liberdade tem sobretudo um valor negativo, de defesa ou protecção, de reserva permanente e inalienável de um espaço de acção mínimo e igual para todos. Pelo que o há a relevar é a liberdade de não ser subjugado pelo mais forte. Por um motivo cristalino. A subjugação é um processo que, por através da força violar a vontade alheia e cercear o arbítrio de terceiros, atenta contra a liberdade. Nesta passagem talvez fosse útil não confundir a capacidade de subjugar com a «liberdade de subjugar o mais fraco». No mínimo para evitar a tontaria de classificar como liberdade o que, mais do que não ser liberdade, é o oposto de liberdade.
A liberdade existe em situação de pluralidade - onde há diferenças de mundivisões e de valores, diferenças inscritas em clivagens mais ou menos pronunciadas, e onde podem ser feitas escolhas -, do que resulta um panorama agonístico, não uma harmonia bucólica. Onde há liberdade há controvérsias, há litígios, há diferendos. Arrisca-se, concorre-se, discute-se, disputa-se, tenta-se. Ganha-se e perde-se. Acresce que, embora não só ela, a liberdade é condição da contenção ou da resolução possível de tais conflitos, em respeito por um conjunto de garantias fundamentais e comuns.
No dia em que a liberdade for a «liberdade do padrão», a «liberdade do imposto», a «liberdade do respeitinho pelos outros», a liberdade não será liberdade. Em liberdade há garantias e dispositivos institucionais para corrigir abusos, se e quando os houver. Comportamentos abusivos são um risco associado à liberdade, não vale a pena iludir. Mas não são um risco exclusivo ou sobretudo da liberdade. Daí que muito mais perigoso para a liberdade do que os abusos eventuais é a senda da conformidade «geral» ou «total», que pretende resolver o pluralismo - ou arrumar a sociedade -, a começar pela anulação da pessoa e do modo como cada pessoa entende usar a liberdade. A liberdade vale justamente por livrar-nos dos outros - da força, da vontade, da intenção, do entendimento, do juízo, do gosto, do desejo, da conveniência, da mania deles. A liberdade vale por permitir-nos estar contra os outros e, por acto ou discurso, manifestar tal oposição. E porque a liberdade de alguém é necessariamente a liberdade de outrem, nem menos nem mais, o respeito pelos outros, como se fosse uma dívida, pode perfeitamente ficar fora da equação dos actos e dos discursos. Basta usar a liberdade, a liberdade contém respeito qb. Fazendo uso da liberdade - e porque os direitos e os deveres são iguais para todos -, qualquer um respeita-se e respeita os outros. Facto que não justifica ou merece lamento. Pelo contrário, justifica e merece defesa. Seja em que circunstância for.
A liberdade de xis não é para satisfazer ou agradar a ípsilon. Menos ainda é para satisfazer ou agradar ao colégio, à maioria do colégio ou aos maiorais do colégio a que xis e ípsilon pertencem. A liberdade de xis é para xis ser livre, apesar de ípsilon e todos os demais, é para xis gozar e sofrer com isso, gozar e sofrer com o que faz e diz (assim como o que não faz e não diz) e com as consequências do que faz e diz (assim como do que não faz e não diz). Quem preferir e quiser viver num país das maravilhas tem várias hipóteses. Por exemplo, pode mandar-se de cabeça para a toca do coelho e deixar-se ir por aí abaixo. Mas, se a preferência e a vontade dos outros for diferente, que vá sem forçar ou obrigar os outros a irem também. Como a entendo e como me esforço para corresponder-lhe - na esteira de uma tradição secular, com muitos séculos -, embora fundada sobre relações sociais e justamente por causa de tais relações sociais, a liberdade está mais para a solidão do que para a manada.
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* vide Sérgio Ribeiro, "Liberdades", in Notícias de Ourém, n.º 3766, 12.março.2010, p. 12.

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