ó freguesa, ó freguês, i

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Por iniciativa do psd, realizou-se quinta-feira passada no cine-teatro de ourém um colóquio sobre a reforma da administração autárquica que, nos termos estabelecidos no programa de apoio financeiro externo a que o estado português recorreu, o governo impulsionou. A iniciativa merece louvor porque tempestiva e em contraste com o mutismo que outros têm investido localmente sobre o assunto, nomeadamente o pessoal do ps. Para que conste, na sessão da assembleia municipal realizada no final do mês passado - e na sequência de uma proposta oportuna apresentada por um membro da bancada do psd (vide aqui entre 7:06 e 9:07) -, o líder do grupo municipal socialista expôs a táctica da esquiva, afirmando que era prematuro prestar atenção à matéria.

Sobre o colóquio. Começou mal, com o cunho do sectarismo que tende a estiolar este tipo de realizações, por, na alocução inicial que fez, o líder da comissão política distrital social democrata ter tentado convencer quem estava presente que o psd era o ás de trunfo nestas matérias de reforma autárquica. Para tanto não se coibiu de, por exemplo, desconsiderar o processo promovido pelo município de lisboa - cujo presidente da câmara municipal foi eleito pelo ps -, que, após investigação, reflexão, discussão e negociação demoradas, resultou nas formalização e apresentação de uma proposta consensual com o objectivo de reduzir significativamente o número de freguesias da capital. O facto de um dos responsáveis principais pelo processo referido ser um militante destacado do ps justifica a amnésia exibida pelo dirigente distrital do psd? Obviamente que não. O registo faccioso usado na circunstância talvez faça sentido em conclaves ou comícios da tribo. Sendo a iniciativa aberta ao público, o proselitismo revelado no período dos salamaleques foi tão só patético. Felizmente o tom sectário e patético do mote não contaminou o que veio depois.

Um apontamento de informação e orientação histórica enquadrou e lançou o debate. Foi apresentada uma sinopse da transformação da organização administrativa do país, com incidência particular nos distrito de santarém e município de ourém. O que é algo que convém ter presente no âmbito do debate público que é necessário travar por cá a propósito do desenho do mapa das freguesias. Em sumário, entre 1928 e 1989, pouco mais de sessenta anos, duplicou o número de freguesias em ourém, passando de nove para dezoito (vide este mapa histórico). O que significa que, a título ilustrativo, se se pretende explorar o argumento da profundidade histórica para defender a subsistência das freguesias, facto é que um número significativo daquelas que existem actualmente em ourém, porque de criação recente, não têm origem imemorial. Seja como for, o que está em discussão é mais o futuro do que o passado, pelo que, para uma orientação mais informada e acautelada, importa aprender as lições que o passado proporciona.

Paulo Júlio, que desempenha actualmente a função de secretário de estado da administração local e reforma administrativa, participou no colóquio referido. Da intervenção inicial que fez, em que revelou dominar a arte de falar bastante e dizer pouco, justifica destacar-se dois factos.

Um desses factos foi a afirmação de que a matriz apresentada pelo governo para orientar o processo de reorganização da base territorial das freguesias é meramente indicativa, serviu para suscitar e orientar o debate, portanto está disponível para acolher as alterações que se julgar terem fundamento. Em consequência Paulo Júlio apelou e exortou a que, à semelhança do que já está a suceder em outros municípios, seja animada por cá uma discussão pública, com o objectivo de se alcançar e apresentar uma proposta convergente com os princípios prosseguidos pelo governo. Apelou e exortou também a que, caso se entendesse mais adequado considerar outros, fossem apresentados critérios alternativos para inscrever na matriz referida.

O outro facto relevante que merece destaque foi a barragem retórica usada para cobrir a base deficiente da proposta governamental, cuja intenção subjacente que se percebe, substraídos os eufemismos, é sobretudo cortar a eito e a esmo. Basta atentar nos quadros com as projecções para notar a ênfase posta nas poupanças supostas proporcionadas pela diminuição disto e daquilo. Em conformidade, no cineteatro de ourém ouviu-se muita vulgata, testemunhou-se muito wishful thinking e voluntarismo, porém não foi possível perceber que tenham sido considerados e assimilados os resultados de investigações e reflexões sobre a realidade autárquica que têm sido produzidas tanto em portugal quanto no estrangeiro. Não era expectável que o documento verde da reforma da administração local fosse uma peça dos deuses. Mas era expectável que tal documento e as apresentação e defesa pública dele não revelassem inconsistências, contradições e omissões graves. Seguem duas amostras, elucidativas.

Comece-se pela matriz famigerada que visa definir o destino das freguesias. Um dos indicadores mobilizados em tal matriz é a classificação das freguesias em função da tipologia de áreas urbanas. Ora sucede que tal tipologia é baseada nos dados do censo 2001. Sim, 2001. Perante isto e verificando-se que em relação ao número de habitantes o governo pretende usar como referência os dados preliminares do censo 2011, que sentido faz utilizar uma tipologia informada por dados equivalentes àqueles mas reportados a uma década atrás? Que raio de cabeças não notaram a bronca que isto constitui? Não deram conta que entre 2001 e 2011 podem ter ocorrido mudanças demográficas que, pelo menos em alguns casos, façam com que a tipologia mencionada esteja desactualizada?

(já agora, sobre o mistério da classificação das freguesias de ourém em apr, amu e apu, esta informação, facultada pelo ine após solicitação, ajuda a esclarecer. enquanto legenda, estoutra informação também é útil para o esclarecimento.)

A outra amostra. Paulo Júlio tentou iludir a extinção de freguesias que irá acontecer, afirmando que a integridade delas será preservada. Isto converge com a doutrina que tem sido propalada pelo ministro adjunto e dos assuntos parlamentares que tem a tutela sobre esta matéria. Mas é pura e simplesmente uma aberração, sobretudo por tal pretensão ou cenário não ter qualquer acolhimento na redação actual da constituição da república portuguesa. É que nos termos do texto constitucional as freguesias são autarquias locais (vide n.º 1 do artigo 236.º), portanto "pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas" (n.º 2 do artigo 235.º). Note-se ainda que, conforme assente no texto constitucional, "os órgãos representativos da freguesia são a assembleia de freguesia e a junta de freguesia" (artigo 244.º). Do que resulta evidente que não há hipótese de, enquanto freguesia, subsistir qualquer freguesia sem os órgãos representativos. Isto é básico e elementar e está vertido de modo inequívoco nas doutrinas constitucional e administrativa que orientam o ordenamento jurídico português. As freguesias que forem agregadas deixam de existir justamente por efeito da agregação, surgindo outra pessoa colectiva territorial, que as substitui. Afirmar algo diverso é mistificar ou pior.

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